Wednesday, March 11, 2009

APITOS DE DESPEDIDA

Navios que não apitam, não se despedem
Texto atualizado em 10 de Março de 2009 -

por Laire José Giraud *

No primeiro domingo (1) deste mês, saiu uma interessante matéria no jornal A Tribuna de Santos com o título “Apitos de navios dividem opiniões”, assinada pela jornalista Lyne Santos, da equipe do caderno Porto & Mar. O assunto da reportagem é a polêmica que divide a opinião entre as pessoas, quanto aos apitos dos transatlânticos de cruzeiros, ao passarem pela Ponta da Praia. O texto é interessante e há opiniões de várias pessoas da Cidade, como a do prefeito João Paulo Tavares Papa e da secretária de Turismo Wânia Seixas, entre outras.

Capa da Lista de Passageiros do

transatlântico holandês Ruyz, do Lloyd Real,

onde são vistos a sua chaminé e seu apito.

Acervo: L.J.Giraud.

Na referida matéria, a minha opinião foi a seguinte: “não existe no mundo inteiro essa verdadeira festa, que é a saída dos transatlânticos. Eu sou a favor dos apitos durante as passagens dos navios pela passarela natural, na Ponta da Praia. Não acho que possam prejudicar o meio ambiente, já que são emitidos por 30 segundos. O charme dos navios é o som dos seus apitos. Sem apito a saída dos cruzeiros não teria graça, já que o sinal provoca emoções às pessoas”.

Uma prova disso aconteceu, no final da temporada de cruzeiros 2001/2002, a despedida do Splendour of the Seas foi uma grande decepção para o grande público presente no calçadão da Ponta da Praia. O belo navio simplesmente passou deslizando em silêncio total. Não deu um apito sequer, deixando todos decepcionados com a atitude do seu comandante de deixar de dar o toque de despedida ou de agradecimento à Cidade que serviu de porto-base naquela temporada ao belo transatlântico. Lamentável!

Não existe em nenhuma parte do mundo a verdadeira festa que é a passagem dos transatlânticos pela Ponta da Praia. Nas saídas, os navios

ão seus apitos de despedidas. Na foto, o Costa Magica em fev/2009.

Ressalto que não sou a favor dos fogos disparados da Fortaleza de Santo Amaro, durante a saída dos cruzeiros. Acho seus estrondos fortes demais, e com certeza prejudicam o meio ambiente. Poderiam ser utilizados outros mais suaves, no estilo dos alegóricos, cujos ruídos são mínimos em relação aos rojões.

Nas primeiras sete décadas do século 20, a cidade de Santos era um verdadeiro cenário de um grande desfile de navios de passageiros (foram mais de 1.500 transatlânticos diferentes), durante o ano todo. Era comum atracarem num mesmo dia até cinco transatlânticos. Esses navios de várias nacionalidades somavam-se aos cargueiros, navios-tanques (como eram chamados os petroleiros) e embarcações portuárias, como lanchas de serviços gerais, rebocadores, dragas, batelões, cábreas, barcaças de abastecimento de água e de transportes de bananas (o Brasil foi um grande exportador de bananas para o mercado europeu). Faziam um grande tráfego no canal do Estuário.

Em décadas passadas, as manobras eram coordenadas por meio de

sinais de apitos dados pelos práticos e eram repetidos pelos

rebocadores, informando que haviam entendido a manobra. Na foto, o britânico Andes, sendo auxiliado por um rebocador da Wilson,Sons.

Foto: José Dias Herrera - Acervo: L.J.Giraud.

O meio de comunicação entre essas embarcações era o código de apitos, o que tornava uma verdadeira sinfonia desses sinais sonoros. Isso acontecia a qualquer hora do dia ou da noite e ninguém se incomodava com isso. Era o som da Cidade do maior Porto da América Latina. O Porto do Café. Essa prática era mundial, pois ainda não utilizavam o rádio como meio de comunicação.

Assim, todas as embarcações usavam esse meio marítimo de comunicação. Na verdade, era uma combinação de apitos curtos e longos, cada um com significado próprio. Por exemplo, uma embarcação que avistasse outra e fosse guinar para boreste (lado direito) dava um apito curto (duração de no máximo de dois segundos); caso fosse guinar para bombordo (lado esquerdo) dava dois apitos curtos. Isso para evitar um possível abalroamento. Há também o sinal de três apitos curtos, que significa que a embarcação está dando máquina atrás. Isso como exemplo, para embarcações em movimento, de acordo com o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento no Mar (Ripeam).

O transatlântico italiano Santa Cruz, passando pela Ponta da Praia

em 1951. Notem os adornos que existiam na famosa amurada.

Acervo: L.J.Giraud

Naquele tempo, quando os navios estavam em manobra de atracação ou desatracação, com auxílio de rebocadores, os práticos se comunicavam do navio para com seus mestres (comandante do rebocador), para indicar o procedimento da manobra. Assim, se utilizavam dois apitos diferentes. Melhor explicando: um apito de boca, no estilo e som dos utilizados por juízes de futebol, e outro do próprio navio (fixado na chaminé). O apito de boca era para comunicação com o rebocador que auxiliava a proa (frente) do navio, e o do navio (com som baritonado) para o rebocador que ficava na popa. Dessa forma, não havia possibilidade dos mestres se confundirem.

Os apitos eram assim: quando os navios estavam sendo empurrados em direção do cais - um curto significava parar; dois curtos, empurrar. Já quando rebocados, um curto simbolizava “puxe para boreste”, dois curtos “puxe para bombordo”; um curto, um longo e um curto era para o rebocador largar o cabo de reboque.

Um dos navios mais conhecidos dos anos dourados no Porto de Santos,

o Giulio Cesare, clicado quando deixava Santos em 1969, por José Carlos Rossini.

Quando um navio vinha descendo o Estuário em direção à Baía de Santos, o prático de serviço informava para a lancha da praticagem o bordo (lado) que ia descer. Caso fosse por boreste, ele dava um apito longo seguido de um curto; caso fosse por bombordo, dava um apito longo seguido de dois curtos. E a lancha se aproximava do bordo solicitado e o prático da barra, como era identificado o profissional que tem profundos conhecimentos das particularidades do Porto, com profundidade, pedras submersas, correntezas e ventos, para que o navio seja sempre conduzido, atracado e desatracado com toda segurança.

Vou aqui relatar um dia de muitos apitos de transatlânticos no Porto de Santos, ocorrido no mês de dezembro do distante 1956, quando estavam atracados quatro transatlânticos muito conhecidos - o português Vera Cruz, o francês Provence, o italiano Augustus, e o norte-americano Brazil (com Z). Tanto no cais como a bordo dos navios o clima era de grande excitação, causada pelas inúmeras pessoas que viajariam, como das que foram se despedir de seus amigos e familiares.

O porto santista sempre teve uma grande movimentação de

embarcações de várias finalidades e a comunicação entre elas até a

chegada do walkie-talkie era feita através de apitos, o que era aceito carinhosamente pela Cidade, que sempre teve o Porto como fonte de

renda. No cartão-postal, é visto o francês Provence em operação de recebimento de cargas, inclusive de cachos de bananas, que ainda

estão nas barcaças ao lado do navio por volta de 1912. Acervo: L.J.Giraud.

Repentinamente, ouve-se um apito longo, vindo do Augustus, que era o sinal para que os visitantes desembarcassem. Pouco tempo depois, dois apitos curtos avisando que ia ser feita a manobra de desatracação, realizada com auxílio dos rebocadores Marte e Saturno, da Wilson,Sons. Na asa do passadiço lá estava o prático Teófilo Quirino, o único à paisana junto ao comandante e oficiais com suas esmeradas fardas, coordenando a faina por meio de apitos do navio e de boca, como já foi explicado.

Em certo espaço de tempo, foram deixando o cais os demais paquetes, como eram chamados os navios de passageiros. Suas despedidas eram três apitos longos seguidos de um curto, que era prontamente respondido por um dos rebocadores.

Imagem do livro Photografias & Fotografias do Porto de Santos,

mostrando o cais santista por volta de 1967. Nas passagens de

ano, todos os navios apitavam simultâneamente. Era de arrepiar.

O apito dos navios, por fazerem parte da Cidade desde os tempos dos navios a vapor, estão presentes nas poesias, nos escritos e nas obras de ilustres santistas como Ruy Ribeiro Couto, Narciso de Andrade, Nelson Salasar Marques e Ranulfo Prata, autor de Navios Iluminados - diga-se de passagem, uma das melhores obras sobre acontecimentos do cais santista.

Ruy Ribeiro Couto conta, numa de suas crônicas, que da Rua Luísa Macuco, que ficava nas imediações do Porto por trás dos grandes armazéns de café e desemborcava no mar podia ver todos os barcos que entravam e saiam. “Lá vai um vapor!”, era o grito de cada instante. O vapor em movimento era a imagem cotidiana com que o universo me mandava alegria. Certamente esses vapores apitavam.

Vale ressaltar que o uso de apitos de navios em manobras foi utilizado até a chegada do sistema walkie-talkie em 1972, quando foi trazido pelo prático Felipe Shcechter, tornando mais fácil a comunicação entre embarcações. O sistema de apitos pode ser utilizado em caso de pane nos aparelhos de transmissão e retransmissão.

Na fotografia de Roberto Botte, o Splendour of the Seas deixando

a Cidade no dia em que não deu o seu apito de despedida para os

populares que foram assistir à sua saída na Ponta da Praia. Sem o

apito foi decepcionante.

Para terminar, uma lembrança. Até 1980, quando o contêiner ocupou seu espaço definitivo, os cargueiros recebiam as cargas soltas, em seus porões, e ficavam no Porto por vários dias, devido à morosidade da operação, ao contrário de hoje, onde os contêineiros permanecem por algumas horas no cais para carga e descarga de contêineres. Desse modo, os navios ficavam vários dias atracados. Com isso quero dizer que nas passagens de anos era de arrepiar os apitos simultâneos dos navios atracados somados aos fogos, que eram ouvidos em toda a Cidade, com grande alegria pela população. Os mais vividos certamente se lembram dessas celebrações.

No site Youtube se pode ver diversos navios apitando ao deixar o Porto de Santos. O primeiro deles publicado abaixo, de 1991, mostra o famoso "Eugenio Costa" deixando o cais e apitando em direção ao mar aberto. O segundo, mais recente, mostra o "Costa Romantica" no início da temporada de 2006, retribuindo os apitos e manifestações de pessoas no Píer dos Pescadores.

Vale a pena conferir esses vídeos amadores.

Uma grande verdade: navio que não apita não se despede!


* Laire José Giraud é despachante aduaneiro, colecionador de cartões-postais da Cidade e de transatlânticos antigos. Colaborador da Revista de Marinha de Portugal. Publicou cinco livros, como autor e co-autor, sobre temas da Santos antiga.

1 comment:

  1. Caro Laire,

    Achei importante reproduzir no SHIPS & THE SEA este seu artigo, como forma de apoiar a defesa do direito dos navios a continuarem a ter voz activa nas despedidas junto à Ponta da Praia, em Santos.
    Não se pode calar a Alma dos navios de passageiros que mais não são que descendentes de tantos e tantos antigos paquetes que ao longo de muitos e muitos anos transportaram para o Brasil tantos ascendentes dos actuais cidadãos do vosso País.
    Há que defender, compreender e acarinhar tradições que não podem ser colocadas em risco por modas "politicamenre correctas".
    Hoje há um pouco por todo o mundo uma ignorância muito grande acerca do papel dos navios como factor de desenvolvimento global sustentado. Sem navios não há desenvolvimento.
    Numa cidade portuária como Santos navios são parte integrante da cultura local e pela minha parte, que já vivi apitos de despedida no vosso porto a bordo de navios de passageiros, só posso dizer que é essa uma das melhores recordações que trouxe de Santos: o navio a apitar espalhando uma emoção universalista que confunde a chegada com a partida, a saudade com a generosidade de um grande porto que sempre soube receber os seus milhares de navios.
    Que belos apitos em Santos guardo na memória desse porto magnífico. Que saudades.

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