"Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outra vez se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o íntimo apelativo de vapor de família."
É assim com esta forma tão original e sua que o escritor José Saramago nos descreve o paquete HIGHLAND BRIGADE, personagem de abertura do livro "O Ano da Morte de Ricardo Reis", publicado em 1984. O nosso Nóbel continua de forma primorosa, com a descrição da vida a bordo e da entrada e atracação em Lisboa, desembarque dos passageiros, e rotina das funcionalidades do cais de Alcântara, sem esquecer logo ali um retrato impiedosos dos autoctones -
"povo atrasado, de mão estendida, vende cada um o que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim continuemos nós a encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio."
- um começar quase pessoano para renascer um dos heterónimos do criador dessa Óde Marítima tão cheia de referências ao porto e aos navios. Porto e navios que são uma das razões deste espaço também de mar. Uma homenagem minha e um agradecimento a José Saramago, acabado de embarcar para a última das viagens.
Resta acrescentar que o HIGHLAND BRIGADE existiu mesmo, terceiro dos seis gémeos construídos nos estaleiros Harland & Wolff entre 1928 e 1931. Com 14.131 toneladas de arqueação bruta (TAB ou GRT consoante a expressão em português ou inglês), peregrinou incansávelmente entre a Europa do Norte e os Brasis, de 1929 a 1959, visitando Lisboa em cada percurso de viagem, excepto durante a Segunda Guerra Mundial quando as regularidades desapareceram por força de circunstâncias.
Inicialmente transportava 601 passageiros em três classes, tendo reduzido a lotação depois da guerra, em 1948, para apenas 439 em duas classes, sendo 104 de primeira. Além de passageiros (muitos emigrantes galegos e portugueses), os HIGHLANDS tinham uma grande capacidade de carga, alternando nos porões o transporte de carga geral e produtos manufacturados britânicos no sentido sul, com carne congelada da Argentina no trajecto norte. Inicialmente pertenciam à companhia Nelson Line e eram cinco - HIGHLAND MONARCH, CHIEFTAIN, BRIGADE, HOPE, PRINCESS e PATRIOT. Este último construído em substituição do HIGHLAND HOPE, de 1930, que traiu o significado do nome meses depois da viagem inaugiral ao encalhar e afundar-se nos ilhéus dos Farilhões. A pouca sorte foi herdada pelo substituto que se perdeu vítima da guerra a 1 de Outubro de 1940, quando navegava de Buenos Aires para Glasgow, carregado de carne e foi afundado pelo U38, um submarino alemão, 500 milhas a Oeste de Bishop's Rock.
Finda a guerra a Mala Real mandou construir novo substituto, mais moderno, igualmente azarado, pois o MAGDALENA de 1948 não chergou a completar a viagem inaugural, perdendo-se por encalhe à entrada do Rio de Janeiro por erro de navegação do oficial de quarto na ponte, a que não terá sido indiferente o efeito dos "drinks" ingeridos horas antes na festa de despedida de Santos. Sobraram assim quatro Highlands, que em 1959 e 1960 foram substituídos pelos três últimos navios de passageiros construídos para a Mala Real - AMAZON, ARAGON e ARLANZA.
Resta terminar dizendo que a fotografia do HIGHLAND BRIGADE retrata uma chegada ao Tejo depois da segunda guerra mundial e faz parte da colecção de negativos feitos em Lisboa pelo arquitecto francês N. de Gröer, que entre nós fotografou os paquetes, de 1948 a 1970, com a mesma dedicação e interesse com que eu faço desde esse mesmo ano de 1970. O negativo integra a minha colecção, por cedência do autor que apreciava as minhas imagens como forma de recordar os seus tempos de Lisboa. O postal é oficial, edição da Mala Real, empresa que absorveu a Nelson Line em 1932.
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Uma pequena curiosidade relacionada com o HIGHLAND HOPE:
ReplyDeletehttp://zeventura.blogspot.com/2007/11/o-naufrgio-do-higland-hope-ou-histria.html
Obrigado pela visita e sugestão, Paulo. Como vão os estudos náuticos? Já se navega à vista?
ReplyDeleteAbraço
LMC