Navio de carga BENGUELA, primeiro dos 56 navios do Despacho 100 a entrar ao serviço
Há quatro anos voltei a referir o DESPACHO 100, dado que agora passam 70 anos de publicação, aqui fica esta informação actualizada a 13 de Agosto de 2015:
Foi há exactamente 66 anos, no dia 10 de Agosto de 1945 que o Ministro da Marinha Américo Thomaz promulgou o seu Despacho nº 100, documento que ainda hoje se associa ao período de ressurgimento da Marinha de Comércio no período que se seguiu à segunda guerra mundial.
Em 1944, o então Comandante Américo Thomaz substituiu Ortins Bettencourt na pasta da Marinha, prosseguindo a política de “Regresso ao Mar” com diversas iniciativas importantes de fomento marítimo, cuja concretização foi possível com o fim da Segunda Guerra Mundial.
A nossa frota de comércio de longo curso era constituída a 1 de Janeiro de 1945 por 61 navios com 225.901 toneladas de arqueação bruta e 307.871 toneladas de porte bruto.
A 10 de Agosto de 1945 foi promulgado pelo Ministro da Marinha o “Despacho 100”, que enunciava os princípios básicos da reorganização da Marinha de Comércio e renovação da frota nacional, com a construção de 70 navios, com 376.300 toneladas de porte bruto. Fazia-se igualmente a distribuição de 12 carreiras, classificadas de interesse nacional, a assegurar pelos 6 armadores mais importantes, estipulando os navios destinados a cada um.
Paquete MOÇAMBIQUE (1949-1972) um dos quatro navios de passageiros
construídos para a carreira da África Oriental
O documento consagrava a implementação de uma nova linha regular com grande significado histórico, para o Extremo Oriente, atribuída à Companhia Nacional de Navegação, que seria inaugurada em Abril de 1952 e mantida principalmente pelos paquetes ÍNDIA e TIMOR até 1974. Esta carreira ligava o Norte da Europa e Lisboa à Índia Portuguesa, Macau e Timor e era subsidiada pelo Estado.
O Despacho 100 foi ajustado e complementado por despachos posteriores, decorrendo a sua execução nos 10 anos seguintes, até à chegada a Lisboa do novo paquete NIASSA, no dia 10 de Agosto de 1955.
Foram assim construídos 56 navios, com 339.407 toneladas de porte bruto, no valor de 3.105.934 contos. Com a nova frota pretendia-se dispor de capacidade para assegurar cerca de 60 por cento das necessidades portuguesas de transporte marítimo com navios próprios, mas nunca se ultrapassou os 37 por cento.
Ao Despacho 100 seguiram-se outras medidas importantes, como a criação do Fundo de Renovação da Marinha Mercante, que assegurava o financiamento dos navios, e da Escola de Marinheiros e Mecânicos da Marinha Mercante, em 1946. A 13 de Junho de 1947, foi constituída a SOPONATA – Sociedade Portuguesa de Navios Tanques, empresa especializada no transporte marítimo de produtos petrolíferos, cuja frota teve a maior relevância, pela dimensão atingida e pelas vantagens económicas decorrentes da sua operação.
A Soponata manteve-se em actividade durante 57 anos, e foi proprietária de 42 navios, quase todos construídos por encomenda. Contribuiu de forma muito importante para o desenvolvimento da indústria naval em Portugal, construindo-se para a SOPONATA 16 navios tanques em estaleiros nacionais, incluindo as 3 unidades da classe N, NEIVA, NOGUEIRA e NISA, cada um com 323.100 toneladas de porte bruto, os maiores navios portugueses de sempre. A SOPONATA (com a frota respectiva) foi vendida a interesses estrangeiros em Maio de 2004.
O paquete VERA CRUZ de 1952 foi o maior navio do Despacho 100
O Despacho 100 “assentou que interessava explorar regularmente (…) as seguintes carreiras: Ilhas Adjacentes, Cabo Verde e Guiné, S. Tomé e Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor, Norte de África (fosfatos), Inglaterra e Norte da Europa (carvão, sulfato de amónio e carga geral), Estados Unidos (carga geral), Brasil, Argentina (trigo), Chile (nitratos), Golfo do México (combustíveis líquidos).” Previa-se a construção de 9 navios mistos de passageiros e carga, 4 navios-tanques, 45 navios de carga e mais 12 navios costeiros para cabotagem em África e nas Ilhas Adjacentes.
Em paralelo com a execução do plano associado ao Despacho 100, desenvolveram-se outras iniciativas, de que resultou a construção de mais navios (extra-plano), caso do paquete SANTA MARIA, diversos navios-tanques para a SOPONATA ou o navio-fruteiro FUNCHALENSE de 1953, primeiro cargueiro saído dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Nesse ano de 1953 estabeleceu-se a carreira da América Central, iniciada pela CCN com o SERPA PINTO, que obteve sucesso imediato e depois foi mantida pelo SANTA MARIA até Abril de 1973.
Um problema que o Governo teve muita dificuldade em resolver na década de 1950 por resistência passiva dos armadores foi o do transporte de passageiros para África. Os 4 novos paquetes introduzidos naquele serviço em 1948-1949, PÁTRIA, IMPÉRIO, ANGOLA e MOÇAMBIQUE, não tinham capacidade para responder a uma procura crescente apesar de equipados temporariamente com terceira classe suplementar instalada nas cobertas dos porões, o que levou o Almirante Américo Thomaz a publicar diversos despachos, a partir de Junho de 1951, no sentido de se reforçar a frota de paquetes na carreira de África com dois navios de 20.000 toneladas de arqueação bruta, 20 nós de velocidade e 1.000 passageiros, semelhantes aos da linha do Brasil.
O custo elevado dos navios de passageiros propostos não entusiasmou as companhias Nacional e Colonial que tentaram rodear o problema encomendando cada uma mais um navio misto, UIGE e NIASSA.
Só em 1957 é que a CNN e a CCN resolveram finalmente seguir as orientações do Governo, encomendando os paquetes PRÍNCIPE PERFEITO e INFANTE DOM HENRIQUE, que foram construídos, respectivamente, em Inglaterra e na Bélgica e fizeram as viagens inaugurais a Angola, África do Sul e Moçambique em Junho e Outubro de 1961.
Navio de passageiros e carga NIASSA (1955-1979)
O caso da encomenda dos paquetes da linha de África reflecte o grande problema de sempre da Marinha de Comércio portuguesa: prudência excessiva dos armadores, pouco dispostos a correrem riscos, preferindo viver confortavelmente de tráfegos protegidos por reserva de bandeira e outros instrumentos proteccionistas do Estado. Mesmo no pós-guerra, período áureo da indústria de transportes marítimos portugueses, sobressaia essa limitação. Neste caso dos paquetes, perderam-se perto de 10 anos e os navios acabaram por operar apenas durante 14 anos.
Outro problema significativo foi o do transporte de passageiros para a Madeira e Açores, servido então por navios ultrapassados tecnicamente, dado que a Empresa Insulana não chegou a mandar construir os dois paquetes de 4.500 toneladas de porte considerados no Despacho 100: a questão prolongou-se até 1959, quando foi finalmente mandado construir na Dinamarca o paquete FUNCHAL, que entrou ao serviço em Novembro de 1961.
Diversas outra iniciativas propostas pelo Ministro Américo Thomaz na década de 1950, como o estabelecimento de serviços de passageiros à volta de África e de uma linha Lisboa – Nova Iorque, não teriam concretização. Entretanto em 1958 o impulsionador do Despacho 100 passou a ocupar o cargo de Presidente da Republica e foi substituído pelo Almirante Fernando Quintanilha na pasta da Marinha, abrandando a pressão governamental no sentido de continuar o desenvolvimento da Marinha de Comércio.
Entre 1958 e 1968 o crescimento da frota foi mais lento, limitado aos paquetes já referidos e a alguns navios de carga, como o LOBITO de 1959, o PONTA GARÇA de 1960 e o BEIRA de 1963, cujas construções foram financiadas ao abrigo dos planos de fomento.
A frota de petroleiros continuou a desenvolver-se em tonelagem e número de navios, e em Março de 1960 foi constituída a Sacor Marítima, companhia armadora especializada na operação de navios-tanques vocacionados para o transporte de produtos refinados e gás, que veio a ter uma certa importância, desenvolvendo frota própria com navios especializados durante os 50 anos em que exerceu actividade armadora.
PRÍNCIPE PERFEITO (1961-1976), o maior dos navios de passageiros
da antiga Companhia Nacional de Navegação
O último navio da frota desta empresa, o butaneiro GALP LISBOA, de 1984, foi vendido em 2009, passando a Sacor Marítima a operar exclusivamente com navios estrangeiros, afretados a tempo ou à viagem.
Os anos sessenta do século XX trouxeram uma verdadeira revolução aos transportes marítimos, com a especialização dos navios e a contentorização progressiva das cargas.
Esta tendência começou a manifestar-se em Portugal de forma tímida. Em 1964 a Sociedade Geral adquiriu um primeiro navio graneleiro para transporte de cereais, o MONCHIQUE ex-BORNES, e em 1967 converteu-se o cargueiro COLARES em navio-frigorífico para transporte de peixe. A tendência para a especialização continuou em 1968 com a entrada em serviço dos primeiros butaneiros e de navios tanques para transporte de vinho a granel.
Em 1966 foram adquiridos a Israel os dois últimos paquetes a integrar a frota portuguesa, os gémeos AMÉLIA DE MELLO e ANGRA DO HEROÍSMO, bons navios de 10.000 toneladas de arqueação bruta equipados com turbinas a vapor e com capacidade para 320 passageiros, comprados respectivamente pela Sociedade Geral e Empresa Insulana, e utilizados nas linhas de Cabo Verde e Angola, e Madeira e Açores.
O esforço militar de defesa do Ultramar a partir de 1961 encontrou na Marinha de Comércio um vector fundamental, com a utilização permanente de diversos navios de passageiros no transporte de tropas e material de guerra, o mais importante dos quais foi o VERA CRUZ.
Para apoiar a indústria naval, o Governo impôs sempre que possível tecnicamente que os navios de comércio fossem construídos em estaleiros nacionais, em Lisboa (estaleiro da CUF – Lisnave e Arsenal do Alfeite), Viana do Castelo, São Jacinto e Mondego.
Na década de sessenta sairam dos nossos estaleiros alguns bons navios, como os petroleiro GERÊS (Alfeite) e LAROUCO (Lisnave), os cargueiros LOBITO, PONTA GARÇA, PORTO e MALANGE (Viana), ou os bananeiros MADEIRENSE e FUNCHALENSE (S. Jacinto), mas o ritmo de construção permitiu apenas um crescimento muito ligeiro da actividade.
Em 1968 o Almirante Manuel Pereira Crespo foi empossado na pasta da Marinha, numa fase em que a frota de comércio caminhava para a obsolescência em bloco, com a maioria dos navios do tempo do Despacho 100 a chegar aos 20 anos de idade.
Sem o carisma paternalista associado ao Almirante Thomaz, Pereira Crespo tornou-se rapidamente um entendido nos assuntos da Marinha Mercante, imprimindo ao sector uma nova dinâmica de renovação e crescimento.
Uma das primeiras medidas de fundo tomadas foi a de propor a reestruturação das grandes empresas armadoras em dois grupos, a Companhia Nacional de Navegação, que absorveu a frota e serviços da Sociedade Geral por fusão com esta em 1972, e a Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos (CTM), que resultou da fusão em Fevereiro de 1974, da Companhia Colonial de Navegação com a Empresa Insulana de Navegação.
A Insulana havia sido vendida pela família Bensaude ao Grupo Tráfego e Estiva em 1970, após o que recebeu autorização do Governo para diversificar a actividade, expandindo a frota e serviços com a abertura de carreiras regulares para África e a reconversão do paquete FUNCHAL para cruzeiros turísticos.
Paquete FUNCHAL, único navio que resta da antiga frota portuguesa, que se encontra imobilizado em Lisboa por ter falhado o projecto lançado em 2013 pela Portuscale Cruises
apoiado pelo Montepio
O Ministro Pereira Crespo procurou acelerar a internacionalização da actividade dos transportes marítimos portugueses, em resultado do que se inauguraram novos serviços ligando o Norte da Europa e o Mediterrâneo a Angola e Moçambique, e entre Angola, os Estados Unidos e o Canadá. Na cabotagem europeia expandiu-se a rede de serviços regulares entre Lisboa e Leixões, o Mediterrâneo e o Norte da Europa, sendo introduzidos os primeiros porta-contentores em 1972. Ainda no campo da navegação especializada, refira-se a constituição de novas empresas, como a ECONAVE, a TRANSFRIO, a TRANSFRUTA, a TRANSNAVI e a SOFAMAR, destinadas ao transporte de contentores, de carga frigorífica e cargas sólidas a granel.
O Grupo SG / CNN procurou expandir as suas linhas regulares, passando a operar para os Estados Unidos e Brasil, ao mesmo tempo que em 1971 constituiu empresas associadas em Luanda e Lourenço Marques, que passaram a assegurar os serviços locais de cabotagem e a participar nas carreiras de longo curso com os navios N'GOLA e PORTO AMÉLIA registados em Luanda e Lourenço Marques, respectivamente.
O ano de 1968 marcou o início do declínio da frota de navios de passageiros, compensada por nova renovação da frota de cargueiros, recorrendo-se em especial à compra de navios recentes em segunda mão, no total de 70 navios até 1974, incluindo construções novas. Um sector que cresceu acima da média mundial neste período foi o dos navios petroleiros, com a SOPONATA a reequipar a frota com 4 navios de 135.000 toneladas DW e a avançar com a construção de 3 gigantes de 323.000 toneladas de porte.
Entretanto prosseguia a venda da maior parte dos navios de passageiros em 1972-1974, e dos cargueiros do Despacho 100 mais antigos.
Um factor que contribuiu para o abate dos paquetes foi a redução dos fretamentos para transporte de tropas, reduzidos a viagens à Guiné a partir de 1972, por o movimento de militares se ter passado a fazer por via aérea, na sequência da compra de 2 Boeing 707 pela Força Aérea Portuguesa. Ainda se considerou a adaptação de um ou outro navio para cruzeiros, mas apenas o FUNCHAL viu concretizada tal transformação.
Marco importante neste período de ressurgimento da Marinha de Comércio portuguesa foi registado a 21 de Maio de 1973 quando a frota ultrapassou pela primeira vez 1 milhão de toneladas de arqueação bruta, na sequência da entrega nesse dia à SOPONATA, do navio-tanque MARÃO.
Ainda em 1973 foram inauguradas as novas instalações da Escola Náutica, em Paço D'Arcos, com instalações modelares, o que permitiu a sua transferência da rua do Arsenal, no Ministério da Marinha.
Infelizmente na mesma altura começaram a surgir factores negativos, a começar pela primeira crise energética, seguida, em Abril de 1974 pela mudança de regime em Lisboa, entrando-se num período de agitação política e social que afectou muito negativamente a Marinha de Comércio nacional. frota.
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Muy buen trabajo amigo ..elaboracion del periodo historico ..que buques aqullos tan bonitos cuando podemos cazar alguno es fabuloso saludos desde Las Palmas
ReplyDeleteExcelente artigo Miguel
ReplyDeleteParabéns por este magnífico post que evoca um momento alto da nossa Marinha Mercante, embora num contexto muito particular. A história não se repete. E para fazer face à desmaritimização - que tão corentemente vem denunciando - e que se tem verificado já de há vários anos a esta parte, não há "novo despacho 100" que se afigure poder vir a inverter esta situação. Mas como "a esperança é a última a morrer", esperemos que melhores dias surjam neste País dito "virado ao mar"!
ReplyDeleteTC
Caro TC,
ReplyDeleteClaro que a oportunidade de medidas do tipo do "Despacho 100" fazem parte do passado e hoje nem um Despacho 10.000 nos valia, tal a regressão económica e cultural que entretanto se verificou entre nós no que toca a assuntos do mar.
O que é dramático é que continua a ser vital e estratégico para Portugal termos o domínio de algum negócio marítimo e frota própria. Ainda vamos pagar muito caro a incúria actual. Espero que a história não se repita em momentos de apertos futuros para o abastecimento de bens essenciais ao País como aconteceu durante a Segunda Guerra mundial. Não sei se de facto a história se repete ou não por si, mas garanto que nos sectores marítimos vimos repetindo erros sobre erros desde há quase 200 anos. E mais grave, não aprendemos nada com isso.