Fotografia histórica do Porto de Lisboa. Uma fotografia como a que ilustra este "post" ficaria bem legendada assim: vista aérea do cais da Rocha e docas de Alcântara e Oeste de Santos - anos cinquenta do século XX.
Acontece que o meu gosto pela investigação histórica às vezes se traduz saudavelmente em querer saber mais. Comecei a observar os navios atracados e uma primeira constatação limitou a data da imagem entre Março de 1952 e Maio de 1953, por a primeira data ser a da chegada a Lisboa do paquete VERA CRUZ (num Domingo, 2-03-1952) que se destaca majestoso no centro da imagem atracado junto à Estação Marítima da Rocha, e a segunda ser a da última viagem do pequeno cargueiro SÃO SILVESTRE ex-FUNCHALENSE de 1927, que se vê atracado dentro da Doca de Alcântara, minúsculo, no canto superior esquerdo, local de atracação dos navios da banana da Empresa de Navegação Madeirense até 1990.
Identificados três dos quatro paquetes da Companhia Colonial de Navegação visíveis na imagem VERA CRUZ, MOUZINHO (atracado pela popa do VERA CRUZ) e SERPA PINTO (atracado dentro da Doca de Alcântara), fui estudar as viagens destes navios e cruzar as datas das estadias dos mesmos em Lisboa em 1952 / 1953.
Após algumas horas de estudo e análise, a xarada foi desvendada e identificados todos os navios portugueses visíveis na imagem.
A fotografia foi tirada a 4 de Julho de 1952.
Os navios são os seguintes: atracados ao cais da Rocha, da esquerda para a direita, o paquete PÁTRIA chegado a Lisboa a 20-06-1952, e que saiu para a viagem seguinte a 8-07 (a carregar no cais da CCN, com o armazém em construção que serve hoje de sede da Liscont), atracado de braço dado pela amura do PÁTRIA está o cargueiro QUIONGA, chegado de Leixões nesse dia com carga a ser baldeada para o PÁTRIA. Seguem-se os paquetes VERA CRUZ, chegado a Lisboa a 30-06-1952, com largada para nova viagem ao Brasil a 5-07 e MOUZINHO chegado de Angola a 19-06-1952, que saiu para Leixões a 10-07 e fez escala em Lisboa novamente a 14-07 para embarque de passageiros para Angola. Pela popa do MOUZINHO, está atracado na Ponta da Rocha o cargueiro PUNGUE que largou para Luanda a 5-07-1952. Paralelo ao PUNGUE, na muralha interior da Ponta da Rocha (esta zona do porto chamava-se inicialmente Doca Oeste de Santos, por contraponto com a Doca Leste cujo molhe deveria sair do Terreiro do Paço e fechar junto à Ponta da Rocha, mas nunca chegou a ser construído), está atracado o LAGOA da Companhia de Navegação Carregadores Açoreanos, chegado a Lisboa a 22-06-1952 e com saída para o Norte da Europa no dia 4-07. No extremo direito da imagem, atracado ao Cais de Santos, no cais privativo da Empresa Insulana de Navegação vê-se o paquete LIMA chegado a Lisboa a 23-06-1952 e com nova viagem à Madeira e Açores marcada para 8-07.
Dentro da Doca de Alcântara, no cais Norte, o cargueiro SÃO SILVESTRE seguido do grande cargueiro INHAMBANE da Sociedade Geral, surto no Tejo desde 16-06, em reparação no Estaleiro da CUF, com o Aviso de 2ª classe NRP PEDRO NUNES, atracado de braço dado. Dentro da Doca Seca nº 1 do estaleiro, outro dos antigos cargueiros da Sociedade Geral, o LUSO, que se encontrava em Lisboa desde 1-02-1952 a fazer uma grande reparação. Finalmente, atracados ao Cais Sul da Doca de Alcântara, o paquete SERPA PINTO, muito elegante, a fumegar (acabava uma importante reparação, tinha chegado a Lisboa a 25-05-1952 e largou a 9-07 seguinte num cruzeiro ao Báltico com a equipe e comitiva portuguesas aos Jogos Olímpicos de Helsínquia). Pela popa do SERPA PINTO, o cargueiro mixto MADALENA, (em Lisboa de 30-06 a 7-07) então a unidade mais moderna da Insulana que fazia a carreira do Funchal com o seu irmão GORGULHO.
Mais dois aspectos interessantes associados a esta bela imagem:
No dia anterior (3 de Julho de 1952) decorreu a bordo do VERA CRUZ uma festa seguida de jantar de gala a comemorar os 30 anos da fundação da Companhia Colonial de Navegação.
Esta fotografia ilustra a transição da frota de comércio portuguesa antiga, que fez a Segunda Guerra Mundial tão esforçadamente, para a frota nova resultante da execução do Despacho 100 de 10-08-1945, cujo navio mais importante foi precisamente o VERA CRUZ.
De realçar que desta imagem já desapareceram todos os navios e todos os grandes armadores respectivos. Ao grande esforço de DESMARITIMIZAÇÃO NACIONAL que é uma das obras mais notáveis do actual regime político português levada a efeito com sucesso desde 1975, só teima em sobreviver precisamente o armador do navio mais modesto da fotografia - o SÃO SILVESTRE (que em 1927 foi o primeiro cargueiro com motor diesel a integrar a frota portuguesa), cuja EMPRESA DE NAVEGAÇÃO MADEIRENSE teima em persistir, crescer e continuar a navegar, o que vem fazendo desde 1907. (Uma possível explicação para a existência "estranha" deste armador será, em termos políticos uma provocação às políticas DESMARITIMIZADORAS do Governo do Continente..., por parte do regime Madeirense).
Imagem de Autor desconhecido. Fazer "click" sobre a imagem para a ampliar. Post dedicado ao melhor blog da concorrência, o ATLÂNTICO AZUL
A very interesting view of Lisbon on 4 July 1952 with four passenger liners of Companhia Colonial de Navegação in port: PÁTRIA, VERA CRUZ and MOUZINHO and inside the dock, the beautiful SERPA PINTO ex EBRO of Royal Mail Line.
Texto e imagens /Text and images L.M.Correia collection. For other posts and images, check our archive at the right column of the main page. Click on the photos to see them enlarged. Thanks for your visit and comments. Luís Miguel Correia
É uma grande honra e um privilégio.
ReplyDeleteE um contributo inestimável para a percepção do drama a que assistimos diariamente (alguns impávidos, outros em puro desconhecimento), resultado de um profundo desinteresse pelos navios portugueses e pela história de Portugal.
A divulgar!
Obrigado, Sailor Girl...
ReplyDeleteGrande foto! a recordar os velhos tempos!
ReplyDeleteFelicidades para o blogue e saudações marítimas daqui da Madeira!
Simplesmente lindo,a foto e o texto,so mesmo aqui com o amigo Luis.Interessante para mim no seu texto foi o tempo que outrora os navios estavam atracados aos portos,ao contrario de hoje onde e tudo muito mais rapido,e todos sabemos porque...outros tempos que deixam sempre saudades.Obrigado por mais este belo momento.
ReplyDeleteCaro LMC
ReplyDeleteEsta espantosa fotografia era digna de ser capa, para um próximo livro a ser escrito pelo meu amigo, intitulado: "Portugal ainda longe da Desmaritimização”. Porque não?
Um duplo abraço de parabéns, não só pela extraordinária foto, mas também pelo belíssimo trabalho de pesquisa.
Saudações marinheiras
Luis Filipe Morazzo
Vamos pensar nessa ideia da capa, Luís Filipe. Para já os livros em acabamento têm capas feitas...
ReplyDeleteObrigado, João Abreu, apareça sempre e fiz um link ao seu blogue (ver Portos de Escala)
ReplyDeleteA diferença abissal entre os dias de hoje e esses dias, em termos de ocupação do espaço do cais.
ReplyDeleteMesmo comparando com os temps (70-80), em que acompanhava o meu Pai, a diferença é enorme, e é isso que me dá ganas e muita raiva!
Agora também para nosso desgosto, esta história mal contada da transferência do terminal de passageiros lá para os confins...
Já se sabe que uma imagem, vale mais que mil palavras.
ReplyDeleteObrigado pela lição.
Ricardo Matias