O paquete PEDRO GOMES, da Companhia Nacional de Navegação, foi um de três navios de passageiros portugueses requisitados pelo Governo em 1931, no âmbito da operação militar de repressão da revolta da Madeira, que alastrou aos Açores e ficou conhecida na época como a Guerra da Banana. O PEDRO GOMES saiu de Lisboa para o Porto Santo, de onde foi mandado seguir para a
Horta com as tropas. A bordo iam diversos jornalistas, de entre
os quais Norberto Lopes, do Diário de Lisboa, que numa crónica
publicada a 22 de Abril de 1931 descreveu a vida a bordo de forma
magistral:
«O
PEDRO GOMES não é um navio, é um quartel. O poço de ré é a
parada de infantaria. O poço de vante é a parada de caçadores. O
bar é a câmara dos oficiais. No «deck» procede-se à limpeza de
metrelhadoras. E há soldados por toda a parte. Soldados que fumam, soldados que comem, soldados que riem, soldados que cantam, soldados
que enjoam.
O
comando da coluna instalou-se na sala de música, entre o piano e o
«jazz-band». O Estado Maior bivacou na sala de leitura. No «deck»
de sotavento alinha-se uma dúzia de cadeiras de balanço, onde os
convalescentes fazem tranquilamente a sua cura de repouso. Um soldado
enrolou-se na manta e acocorou-se em cima de um tubo de vapor.
-
Que é que tu fazes ai? Perguntou o comandante do navio.
-
Não faço mal a ninguém… Não me mande embora, meu senhor. Está
tão quentinho aqui!
A
temperatura realmente desceu. Em compensação o barómetro subiu. O
tempo amainou. O mar está mais amável. Vultos enrolados em mantas
saíem de um porão e sobem lentamente para o convez, a um fundo,
como uma confraria sevilhana. É a confraria dos enjoados. Que foi
autorizada a permanecer no «deck» de primeira classe, graças à
piedosa intervenção do médico do destacamento, o dr. Bicudo de
Medeiros. Há rapagões de Trás-os-Montes e da Beira vencidos pelo
mar. Oiço-os conversar timidamente, como crianças, junto da vigia
do meu camarote.
-
Raio de valsa que não acaba mais!
-
E o Funchal ainda é muito longe? Pergunta um do Alentejo,
prolongando a última silaba da palavra «longe», como se quisesse
emprestar-lhe a noção de distância. O «mê» amigo tinha-me dito
que eram trinta e oito horas de viagem… Afinal já cá andamos no
mar há cinco dias – e nan vejo modos de chegar ao Funchal…
-
Eu cá não me incomodo, diz outro. Aqui não se passa mal.
-
E a gente sempre vai correr mundo, não se paga a passagem.
-
Tu já sabes para onde vamos?
-
O nosso sargento disse-me que iamos p’ras ilhas dos Açores,
responde um cabo de infantaria.
-
É muito longe? Pergunta o 515 de caçadores.
-
Temos de andar outrotanto, elucida um de metrelhadoras, que é
entendido em geografia. Os Açores são umas ilhas que ficam no meio
do mar e pertencem à gente.
E
a conversa prossegue no mesmo tom ingénuo e pitoresco. Um diz que
lhe tem custado a aguentar o mar, este declara que nunca esperou ver
tanta água junta, aquele pergunta à sua maneira o que ficará para
além da linha do horizonte e o outro mostra-se surpreendido porque
ainda não viu sinal de «criação» à tona de água.
O
clarim tocou a reunir. Fez-se a chamada.
-
Falta um homem, meu tenente.
-
Procurem-no por toda a parte.
Partiram
soldados para todos os cantos do navio. O 471 da 1.ª não se
encontra vivo nem morto. Ninguém o viu sair a «porta das armas».
Não teve «licença de recolher». Nenhuma embarcação atracou ao
navio. O navio não atracou a nenhum cais, Onde está o 471 da 1.ª?
-
Pronto meu tenente. Estava dentro do «gasolina», aninhado junto da
casinha do motor.
O
mais curioso da expedição são os soldados. Um jornalista francês
chamou-lhes os maiores anões do mundo. Lembro-me de que ainda
escrevi qualquer coisa a protestar. Dou a mão à palmatória. O
francês tinha razão. Não são apenas pequenos de estatura. Têm
alma de criança, uma alma branca e ingénua enquadrada dentro de uma
medalhinha que trazem ao pescoço.
-
Foi minha Mãe que ma deu.
-
Tu ainda tens Mãe?
-
Tenho.
E
os que não têm Mãe, têm uma irmã, têm uma noiva, e enquanto
eles andam sobre as águas, por essas paragens que o demo sulcou, a
Mãe reza, a irmã reza e a noiva também reza.
-
Homem, se a gente escapa desta, tem muito que contar…
Eles
talvez. Nós não…
Norberto
Lopes.”
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