Cristóvão Colombo gostaria disto. Não só por ser homem do mar. Nem só por ter rasgado, pelo mar, novas rotas e horizontes. Mas pela semelhança deste ovo de Colombo com o “acaso” da sua descoberta da América: tropeçar assim em todo um continente – e nada mais, nada menos que no Novo Mundo – quando ia “apenas” a caminho do Oriente pelo Ocidente.
Quando, no Natal passado, começámos a trabalhar a ideia de promover uma comissão parlamentar especializada para as Políticas do Mar, fizemo-lo na ideia de a Assembleia da República não continuar alheada da nova atitude acerca do mar, que já despertou e vai rasgando caminho. Na minha teoria dos quatro recursos estratégicos nacionais (pessoas, território, posição geográfica e língua), o mar é, pelo menos, metade de dois destes.
Dias depois de arrancarmos, morria Ernâni Lopes, um dos construtores do moderno pensamento marítimo português. Este triste acontecimento mais me animou a trabalhar, em espírito de independência, abrangência e sociedade civil, para conseguir que essa inovação viesse a constituir a fecunda homenagem, prática e parlamentar, a essa nossa grande figura contemporânea. E, à medida que o grupo se alargou, trabalhando e aprofundando a ideia, mais se foi tornando claro que a comissão parlamentar não seria só uma resposta adequada a um velho problema político – mas que é “a” resposta.
O problema mais crítico nas políticas públicas do mar tem sido o de as dotar de um vértice estável na superstrutura do Estado. Fosse ministério, ministro-coordenador, plataforma interministerial, ou outro arranjo orgânico, a verdade é que nunca se encontrou uma solução satisfatória. São frequentes as descontinuidades nas últimas décadas. E daí decorre a incapacidade de afirmar e estabilizar uma visão de conjunto continuada e, correspondentemente, harmonia, coesão, coerência, consistência e perseverança nas diferentes políticas relativas ao mar.
Alguns defendem um Ministério do Mar, que já chegou a existir. Esta ideia foi revisitada recentemente, ou em exclusivo, ou num ministério “a meias”. Não quero, aqui, intrometer-me na questão, que competirá ao próximo primeiro-ministro. Quero tão-só chamar a atenção para que, independentemente dos méritos que possa, ou não, ter, o ministério não resolve “o problema”.
O mar é um território, não é uma matéria. E, tal como para a terra, é impossível que um só ministério abarque a totalidade das políticas que aí se exercem ou projectam. Mesmo que um governo concentrasse num mesmo ministério as competências quanto a pescas, portos e transportes marítimos (o núcleo principal das experiências de Ministérios do Mar), isso não resolveria o problema da coerência global na condução das políticas do mar. A Marinha, por exemplo, nunca sairá da tutela do Ministério da Defesa Nacional; e há dezenas de outras incidências das actividades marítimas e, portanto, das políticas do mar que nunca deixarão de pertencer – e bem – aos respectivos departamentos governamentais materialmente competentes: a investigação e ciência, os desportos, a energia, o ambiente, o turismo, a animação e sensibilização escolar, o ensino especializado e superior, a formação profissional, o trabalho e o emprego, a cultura, os estrangeiros e fronteiras, as polícias, a indústria e o comércio, a integração europeia, etc.
É aqui que se vê como a Assembleia da República pode ser a chave. Aliás, de uma forma particularmente económica, ágil e maleável, porque não envolve os custos da migração de estruturas da Administração Pública, nem teria a rigidez e o peso que lhes é inerente.
A Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar pode ser a sede política permanente da visão de conjunto e de uma contínua reflexão abrangente sobre o mar português, com quatro importantes vantagens adicionais: primeiro, teria grande visibilidade para a opinião pública; segundo, a própria dialéctica maioria/oposição ajudaria o governo a implementar o dinamismo e a coerência que se busca para as políticas públicas do mar; terceiro, daria músculo político à coordenação interministerial; e, quarto, asseguraria continuidade na estratégia nacional para o mar, para além da normal alternância democrática nas maiorias e no governo.
Independentemente da orgânica governamental, onde a condução articulada também importa, aquela Comissão pode constituir o grande passo em frente: contributo decisivo à resolução de um longo problema e dificuldade clássica; enorme avanço na abordagem de um grande desafio estratégico e estrutural para o futuro de Portugal.
Portugal é atravessado cada vez mais por uma mudança de percepção relativamente ao valor do mar. Estamos – e ainda bem – diante de um novo paradigma nas atitudes perante o mar.
Somos ilhas e península. O mar impõe-se-nos como tema incontornável. Além das importantes vertentes tradicionais, cresce a consciência sobre os “novos usos do oceano” e sobre a sua relevância como espaço e eixo estratégicos. Percebemos cada vez mais o mar não apenas como questão de tradição, mas imperativo de modernidade; não apenas um traço essencial da nossa identidade, mas também nova e vasta oportunidade para o nosso futuro colectivo.
Mobilizar o Estado, ao seu mais alto nível, a partir do Parlamento, onde se representa toda a República e toda a cidadania, para este grande desígnio é o passo que faz falta.
O mar não é apenas passado. O mar é sobretudo o futuro.
José RIBEIRO E CASTRO [artigo publicado no jornal PÚBLICO, em 30-abr-2011]
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